Querido Tratador.
Espero que esta
missiva o encontre no mais que perfeito gozo de seus imensos poderes.
Não tomo da pena
para lhe informar sobre alguma coisa pois não julgo isso necessário
mas para lhe fazer uma rogação; rogação esta, que se eu pensar
mais uma vez sobre ela, verei que também carece da necessidade de
ser expressa; mas confiante em sua benevolência cometo esta
redundância.
Foi em meados do
século XX que nos conhecemos e eu ainda me lembro, claro que muito
vagamente.
Eu era muito novo
neste mundo e estava descobrindo que bastava um simples gemido meu
para que sua generosa mão me afagasse e sua vontade providenciasse o
que era necessário para mim naquele momento, eu não sentia nem fome
nem frio naquele tempo sem ser saciado e aquecido de alguma maneira.
Mas o tempo passou e
enquanto passava sua onipresença sempre deu segurança para os meus,
ainda inseguros, passos em direção ao futuro.
Eu me recordo, que o
via chegar do nada e afagar os meus ralos cabelos, falar comigo mesmo
sabendo que eu nada entendia do que dizia; sua voz me fazia feliz,
tão feliz quanto me fazia o meu pratinho de mingau de fubá, às
vezes feito com água porque nem sempre tínhamos o leite necessário
ao acepipe.
É, eu sei que graças
ao senhor, querido Tratador, nunca nos faltou o que comer ou beber,
nem mesmo um abrigo para nos proteger das intempéries e dos perigos.
Eu sei também que
sob seus cuidados sempre fomos livres para tudo e em nossa casa
(toca) sempre tivemos o suficiente para ser partilhado com todos os
que por lá chegavam com fome sede ou cansaço.
Nossa água matava a
sede dos que estavam sedentos e nossa comida a fome dos que por lá
chegavam em busca de um abrigo para descansar os pés antes de seguir
o seu destino.
Meus amiguinhos
vinham brincar comigo e eu partilhava os brinquedos que me davas,
todos por sinal de sua própria lavra e na pracinha de areia nos
divertíamos muito mudando “montanhas” de lugar com nossos
carrinhos e quando algum deles quebrava, la vinha o senhor, querido
Tratador, nos ensinando a consertá-lo.
Faz algum tempo que
isso se tornou passado.
Eu me lembro que a
este tempo tinha liberdade para ir a qualquer lugar e a qualquer
hora; ir, se pudesse, até aqueles pontinhos brilhantes no céu
noturno que eu podia ver da entrada da minha toca (lar).
Mas hoje, querido
Tratador, minha casinha (toca) tem barras de aço em volta, ouvi
alguém dizendo lá fora, que era uma gaiola, eu não entendi o
porque da mudança mas agora, hoje, ninguém vem mais à minha nova
toca (casa) e eu não posso mais ir a qualquer lugar nem a qualquer
hora, eu não consigo passar pelas barras e assim ir aos pontinhos
que brilham de noite, aliás, já não os posso ver mais da entrada
da do meu lar, mesmo porque já nem sei mais se vivo uma casa ou em
uma gaiola, seja lá isso o que for.
Hoje, querido
Tratador, eu falo com amigos distantes a qualquer momento, posso
vê-los e quase os toco, no entanto os que estão próximos quase
nunca estão tão próximos para serem tocados ou para que eu possa
ouvir o real timbre de suas vozes ou ainda, para que possam eles
ouvirem, ao vivo e a cores, o que lhes digo, sem a intermediação de
uma parafernália de tímpanos mecânicos e janelas coloridas de vido
ou LEDs.
O tempo que eu podia
ouvir a sua voz com clareza, meu querido Tratador, perdeu-se no
passado e eu nem mesmo sei para onde, nem como ele se foi.
Perdeu-se no tempo e
no espaço.
Sua voz tomou muitos
timbres e nenhum deles é o vosso, aquele que outrora foi meu
conhecido e o que falas por elas é uma sucessiva reiteração, de
sentenças pinçada aqui e acolá, tendo em vista o momento a serem
inseridas e não mais no contesto em que estas foram escritas, com a
finalidade para que foram escritas.
A mesma voz que fala,
quase nunca, pratica o que diz.
Por outro lado a sua
face, a sua face tão bem por mim conhecida e indefinível, está
deformada, estilizada e quase sempre esconde subliminaridades
inconfessáveis até no canto mais recôndito do inferno de Dante e
ela hoje rotula, em letras e(ou) imagem, tudo o que pode ser vendido
ou comprado por algo ou alguém, em algum lugar, seja ele onde for.
Eu não consigo
entender isso.
Não posso vê-lo
mais em meio à estas oito bilhões de faces; não posso ouvi-lo mais
em meio às falas, aos berros, aos urros, aos gemidos e aos desvairos
desta alucinante e quase infinita homiliada que rodeia-me em roscas e
volteios, serpenteando ameaçadora ao redor desta minha nova morada.
Maravilhoso mundo
novo este em que vivo.
Tão cheio de
espíritos e tão vazio de almas, repleto de coisas e sem nada de
realmente útil ao crescimento humano, pleno de belezas a oferecer
sem ter nada de belo para dar, cheio de amor e sem amor para doar;
caro, muito caro para se viver e barato, barato demais para se
morrer; um mundo onde a ignorância é a sabedoria, sabedoria que vampiriza o
poder e esta, a sabedoria real e verdadeira, moralizante e
construtiva, hoje é apenas o rebotalho, nada mais que a escória
repulsiva de uma sociedade decadente.
Se tanto escrevi, foi
para dar uma ênfase maior à minha rogação.
Bem sei que a minha
atual casinha é pequena demais e não comporta a sua grandeza física
e moral, mas antigamente ela era ainda menor e cabias ali
confortavelmente, ainda sobrava espaço para todas as brincadeiras,
por isso rogo-lhe que faça de novo, outra vez, este milagre.
São Paulo, SP, 09/10 de
Novembro de 2013
Mkmouse
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