quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Canto do Piaga


     Estamos deixando a era onde o culto à ignorância deu o seu bote final e, em estertores de pleno êxtase (para não dizer total orgasmo) o seu rolo acéfalo de músculos e ossos, na maioria das vezes, falsamente sem teto nem terra e quase sempre o suprassumo da inutilidade absoluta, alimentados então pela maquinaria governamental foram esmagando sob a visão absolutista do poder supremo toda e qualquer resistência à instalação completa do obscurantismo, do totalitarismo populista.

    Ao cair das luzes de 2010 em um fenomenal e mal feito parto de montanha, a ignorância que levou mais de vinte anos para se instalar, precisou de apenas dois meses para se fixar como residente definitivo no cerne do sistema legislativo e emergiu, hilária, para o resto de um espantado mundo que ainda pensa ser civilizado.

    Mas a consolidação do final da era veio com a coroa da criação, lapidada que fora para este fim durante os imperialísticos tempos da era que se vai, em avassaladora fúria eletro-eleitoreira chegou para iniciar o fantástico mundo novo onde a apologia ao crime, (negada sem veemência na era passada), pode por fim estar a se fixar legalmente na sociedade tendo em vista o lema "Libertas Quæ Sera Tamen", desta feita, quem sabe ocupará, não só os cortiços e as favelas miseráveis das grandes metrópoles, onde o seu domínio tem sido rendoso, próspero e duradouro mas sim, para assenhorar-se dos hoje pobres e miseráveis palácios metropolitanos de onde a ordem, a lei, a liberdade e o progresso (antigos senhores, bregas residentes) foram expulsos para quem sabe jamais voltarem pela não só falsa, como também erronia ideia do: “vox populi, vox Dei”.

      Infelizmente para a população, mas quase nunca para a mesquinha massa de manobra político-social, as coisas podem ficar pior do que já está e isso é absolutamente natural inclusive para espécie humana e muito em especial, quando esta espécie se nivela por baixo ou seja, pelos padrões mais animalescos da jovem e insana raça Terrícola.

    É sempre possível que as coisas fiquem pior mas é sempre muito e muito difícil fazê-las ficarem melhores, piorar é sempre muito fácil mas melhorar... a isto sim é muito difícil, requer intelecto, trabalho, honestidade, retidão de princípios, requer o cumprimento de obrigações (e as mais diversas) e não requer o reclamo de direitos assim como e também passa bem ao largo de idéias e outros socialismos absurdos ligados estes apenas ao ato de receber, quando não toma à força, o que existe de bom e melhor em uma sociedade e desligados sempre do ato divino de produzir, conceber e manter o que existe de bom e melhor para e, em uma sociedade.

    Todos os homens tem direitos, mas só os verdadeiros homens, homens de honra e idoneidade a toda prova, cumprem primeiro com todas as suas obrigações antes de pensar em clamar por algum direito.

    Todos os homens tem direitos, mas só os verdadeiros homens, homens de honra e idoneidade a toda prova, não colocam os seus direitos acima dos direitos de outros homens.

    Até os tidos como animais, da base ao topo da cadeia alimentar, cumprem as rotinas acima só o homem teima em achar-se o centro do universo, só o homem pensa que é Deus e o restante do universo só existe para servi-lo, (inclusive os outros homens) para atender aos seus mais insignificantes e mesquinhos desejos ou ainda, às suas maiores torpezas.

***

    Eis que então ao Rato por ora apenas resta tomar a pena do poeta e retornar com ela no tempo, ao tempo de seus versos:


O Canto do Piaga (1)


Ó Guerreiros da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam os Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros meus cantos ouvi,

Esta noite – era a lua já morta -
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! Que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d'imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro – ossos, carne – tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que vi.
Falam os Deuses nos cantos do Piaga,
Ó guerreiros meus cantos ouvi!

II

Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não vistes nos céus um negrume
Toda a face do Sol ofuscar;
Não ouvistes a coruja, de dia,
Seus estrídulos tôrva soltar?

Tu não vistes dos bosques a coma
Sem aragem – vergar-se a gemer,
Nem a lua de fogo entre as nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ò desgraça! Ó ruína! Ò Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
- Brenha espêssa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.

Ò! Quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Êsse monstro... - o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem Trazer-vos crueza, impiedade -
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a massa valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão pouco serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Sustas as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!


    (1) Poema copiado, na íntegra, das páginas 45 a 47 do livro Gonçalves Dias – Antologia, da Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel  - 1966


***

    Tomara, queira Deus, que este Rato mais uma vez esteja errado...

    Boa noite.
 


mkmouse