(1)
Coloco o fumo de corda, picado a canivete, na palha fina.
Alguém se aproxima de mim por trás
Ouço um cli...
Atrás de mim à esquerda o murmurar de vozes em sons confusos e distantes na barraca da cozinha, ainda atrás de mim e depois de alguém, silenciosa a barraca dormitório bem como a outra, também dormitório, que tem a cozinha como vizinha.
Estou a ajeitar, com o canivete, o fumo à palha.
Um agradável cheiro de comida espalha-se pelo ar o qual mistura-se incontinente ao olor de terra inda molhada por chuva tranqüila cujas gotas como orvalho, agarra-se teimosamente à grama, que rasteira cerca-me por completo.
Dois fachos de luz, acompanhados por característico ronco de motor unido a ruídos peculiares como o ranger de molas que aliados ao esmagar dos pneus a rolar, atinge-me a íris e os tímpanos de traves á direita.
Era o terceiro veículo, o último, que da Casa Grande chegava sacolejando pela trilha na mata e que sem cerimônia nenhuma iria adentrar à clareira e alojar-se ao lado de outros dois que alinhados á luz da fogueira, pareciam adormecidos.
… ic...
Um relâmpago iluminou a clareira e o que nela havia: um, duzentos e cinqüenta avos de segundo acabara de passar.
A pessoa que apertou o botão do clic começa a se afastar, tão muda e silenciosa como chegou.
Começo a enrolar a palha ao fumo.
O motor silencia-se, adormece, abrem-se as portas, novas vozes junta-se ao coro da cozinha que após breve silenciar se fizera intenso novamente.
O enrolar da palha no fumo agora ia ao meio, após um característico vai e vem inerente ao contesto.
O cheiro de novos e gasosos odores perdem-se no ar freso e úmido.
Ouço a voz advinda do silencio quase secular dos hartos troncos, robustos, gigantes, donde as imbiras do cimo pendentes(2) une grandeza à pequenez.
Duas portas se fecham.
Chega ao fim o rolo da palha, é quase pronto o cigarro.
Sinto-me observado.
Olho para cima e lá esta Argos olhando a tudo e não só a esta criatura.
O ar, líqüido globular da abóboda celeste, plena em seu contraste visto ter Apolo partido, a observar o Cosmo faz com que os olhos de Argos pisquem zombeteiros sobre minha alma tranqüila em um tranqüilo anoitecer.
Abaixo a cabeça e com saliva a palha lacro.
Torna-se mais forte as vozes vindas da escuridão que ora abraça, com sutil força escondendo, as fraquezas, as grandiosidades e as sombras do reino vegetal e animal unindo-se, o canto e vozes estas, às vozes que como um coral me chegam ao pavilhão auricular da barraca, agora tão concorrida.
Crepita, caminhando para o auge, a fogueira á minha frente, a qual contemplo sentado em uma cadeira de praia.
Em no máximo uma hora a janta estaria pronta.
Dobro uma das pontas do cigarro e levo a outra à boca.
Tic-Tac, Tic-Tac...
Em meio a toda esta riqueza de sons, estava eu a ouvir um ruidoso, o nosso espalhafatoso, despertador em seu inexorável caminhar a conversar com o tempo que passa e lhe faz companhia amenizando a sua solidão.
Engraçado como o rugir silencioso da mata aguça nossos sentidos!
Tic-Tac, Tic-Tac...
Esvai-se o tempo no próprio tempo e a seu tempo, levando consigo o meu tempo.
Tic-Tac, Tic-Tac...
Quando do Tic chega o seu “T” este já é passado e o “i” não terá tempo para ser presente pois o “c” que outrora era o futuro esta a chegar, precedendo o silêncio que o separa do “T” do “Tac” que é o futuro próximo e este, o “T”, por sua vez arrasta consigo e na seqüência o “a” e o “c” todos ainda, neste fugaz instante, um futuro mui distante.
Olho para cima de novo, e vejo o rosto de Argos, a face de um passado [retrato de um tempo tão distante (senão mais distante ainda) como o dia do nascimento da Terra] ainda vivo, real na minha realidade, real no meu ali, real no meu hoje, real neste agora onde quer que seja, ou esteja, nesta Urbe Planetária!
Não consigo ver a realidade do agora, só o ontem distanciar-se de mim em vertiginosa corrida.
Não posso ver o amanhã, senão entre o desfilar de um Tic e um Tac...
Eis então que prevejo o futuro próximo:
- “Vou ascender o cigarro!”
Curvo-me para a fogueira.
Tomo de uma pequena acha e a aproximo da ponta dobrada do cigarro, a queimo e num longo aspirar o faço ascender em definitivo.
Desta vez acertei!!!
Nada interveio no processo desencadeado por mim.
Devolvo a brasa a sua origem.
Tic-Tac, Tic-Tac...
Estou dez Tic-Tacs mais próximos do momento de partir novamente para São Paulo e gozar do merecido recesso de fim de ano.
Saboreio com um prazer indescritível este momento único.
Há quase quatro anos que eram assim as últimas horas em um acampamento.
O cenário natural é sempre diferente a cada mudança, a cada volta ao campo, mas muito raramente mudava algum ator e nunca o palco onde se representava a peça que era sempre a mesma mas repleta e plena de improvisos em seu cotidiano.
Prevejo o futuro:
- “O ano que vem novos horizontes serão o meu palco nesta gloriosa natureza!”
Tic-Tac...
E foram!
Tic-Tac...
Quando cheguei em São Paulo, fui demitido!
Tic...
Hoje mais de três décadas depois posso escrever que graças a isso e a muitos outros “issos”, vi novos mundos, vivi muitas vidas, bebi de muitas águas, representei muitas peças e em muitos lugares, ampliei meus limites, estendi meu horizonte até onde pode chegar a minha imaginação humana e consegui, consegui viver as alegrias e agruras do presente, este tempo infinitamente pequeno, que separa o ontem do amanhã.
E a foto daquele começo de noite?...
Só Deus sabe por onde anda se é que existe.
Mas o homem é uma máquina do tempo e quanto mais tempo vive mais poderosa máquina temporal o é.
O homem, quando boa máquina do tempo pode ver, cheirar, ouvir e sentir vividamente o passado, pode dormir sobre o travesseiro das boas visões e nas horas de vigília pode contar com a sentinela que é, pois que como todos, não só viveu muitos maus momentos mas, e também, viu quem estes momentos houve por seu turno viver. Assim, e por isso mesmo, tem como saber a maneira, o modo de como podemos deles escapar e ainda na maioria das vezes quase plenamente ilesos.
A partir de agora e para os anos que possam vir, desejo a todos que consigam dormir tranqüilos e felizes sobre o travesseiro das boas lembranças, das futuras delícias e almejadas felicidades, que consigam sempre se livrar, contornar e vencer os empecilhos, as agruras e mazelas que possam ser encontradas pelo caminho e que a tristeza se lhes apresente sempre como um simples fantasma que, desesperado e em fuga desabalada, vai desfazendo-se á luz de um novo dia.
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1- Relogios Moles (The Persistence of Memory) - Salvador Dali (1931) - (Antes que receba alguma comunicação sobre a obra por mim citada e mostrada, quero informar que devido a quantidade de quadros que vi sobre o tema, não posso (não entendo de artes plásticas) garanti-la como uma obra de Salvador Dali.)
2 - O Canto do Piaga, Gonçalves Dias, Antologia (1966), pg 47 – canto III vs 45 a 50 – adaptados no texto pelo autor
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