II
O
Purgatório
A
entrada do Purgatório.
Um
anjo guarda a Porta de São Pedro (Canto IX - A Divina Comédia).
Ilustração
de Gustave Doré (século XIX)
Dei as costas à
aparente interminável fila de mortos e vivos que em marcha
cadenciada seguiam pelo caminho que haviam escolhido, a passos largos
segui em sentido oposto ao fatídico portal, o destino da fila.
“Para
navegar por águas melhores, minha poesia agora deixa para trás
aquele mar cruel e segue para o segundo reino, onde a alma humana se
purifica, e se torna digna de elevar-se ao céu.
Quatro
estrelas iluminavam o céu do Polo Sul. Quatro estrelas nunca vistas
por homem algum em vida (a não ser pelo primeiro casal), pois nunca
são vistas no céu do hemisfério norte. Voltei a minha atenção ao
outro polo, e vi um vulto se aproximar. Era um velho solitário.
Tinha barba longa e cabelos brancos. Seu semblante era iluminado pela
luz das quatro estrelas, que davam-lhe um aspecto divino, como se a
luz do Sol brilhasse em seu rosto.
-
Quem sois vós? - perguntou ele, movendo suas plumas. - Quem sois vós
que, vencendo a correnteza do cego riacho, conseguistes fugir da
prisão eterna? Quem foi que vos guiou? Quem foi a lanterna que vos
indicou o caminho pelas trevas infernais? Será que todas as leis do
abismo foram destruídas? Ou foram novas decisões tomadas no céu,
permitindo que vós, condenados, chegásseis até o pé da minha
montanha?"
A
Divina Comédia - Saída
do inferno Quatro estrelas
Espírito
de Catão de Útica - Canto
I
Dante
e Virgílio diante de Catão de Útica.
Ilustração
de Gustave Doré (século XIX).
Como não pude começar sem ser dantesco,
agora não menos, dou continuidade ao tema.
Estamos no terceiro mês de um ano com mais um
sufrágio universal maior, em tais épocas o purgatório se torna
algo lógico, completamente explicável, justificável e racional
enfim, um paraíso; o inferno, ah este sim, por mais tenebroso e
eterno que seja a sua realidade, se torna apenas uma leve, momentânea
e passageira atribulação.
São os milagres realizados pelos meios de
comunicação sob o férreo cabresto do Sr. Poder, capataz
inescrupuloso do Sr. Patrocinador, da Sra. Corrupção e da Dona
Chantagem, todos estes nababescamente recompensados pelo Ilmo. Sr.
Lucro, filho de sua excelência excelentíssima, O Divino Capital.
É nestes anos que misteriosamente a imprensa
em todas as suas formas assume a forma da justiça, um belo e
escultural corpo pleno em curvas voluptuosas, de uma seriedade única,
impar, até em suas formas mais humorísticas é fria, lisa como o
mais imaculado mármore de Carrara.
A imprensa nestas épocas não só herda da
escultural e simbólica figura as formas mas também o seu conteúdo;
são sei o por que, mas nestas épocas a imprensa não só cega fica
e completamente, como também perde a capacidade de pensar, é como
se ela por motivos ainda ignorados perdesse toda a massa encefálica e
o seu lugar é ocupado por apenas um bloco sólido e único de rocha
metamórfica calcária, com as cores mais variadas possíveis de
serem imaginadas.
A capacidade de mentir, ocultar, disfarçar,
desdizer e desinformar é tão grande e sofisticada que, se a seis
meses das eleições, acontecesse algo por aqui nos moldes do tsunami
de 2004 e a divulgação jornalística deste ocorrido não fosse do
interesse eleitoreiro ela, a imprensa livre deste país, só iria
notar o ocorrido no dia seguinte ao término das eleições.
Nem o mais aguerrido dos repórteres, da mais
poderosa à mais humilde das mídias, ficaria sabendo de nada antes
do término das eleições, nem mesmo se tropeçasse nos destroços e
cadáveres apodrecidos todos os dias, ao ir para o seu trabalho.
Eu fico bestificado quando descubro que no
país das Alices, se nomeia para cargos de presidência e diretoria
pessoas sem o menor conhecimento do que vão dirigir ou presidir,
acho que o único requisito exigido além de ter sido um distribuidor
de santinhos em eleições é fazer uma assinatura digital (com tinta
de carimbo) por extenso e é claro saber pronunciar com clareza em
alto e bom tom: “Você Sabe Com Quem Está Falando?
...Seu
Zé Ninguém!”.
Jogo
de chaves estrela para qualquer ocasião
Dizem que ser mãe é padecer no paraíso, mas
eu vos afirmo que nos dias de hoje ter (na pior das hipóteses)
alguma parte do cérebro funcionando, pensando, além de sustentar a
vida biológica que o irriga de sangue, é ter que viver
incondicionalmente em um purgatório; purgatório este, que desta
feita não é uma ante sala do paraíso mas sim uma outra porta para
o inferno.
Vivo em um país cuja infra estrutura
portuária é cara e obsoleta mas que constrói portos modernos em
outros países com o erário que lhe é próprio.
Vivo em um país sem infra estrutura para o
atendimento do público em seus hospitais (disto eu sou testemunha
física e ocular) no entanto constrói estádios monumentais de fazer
inveja aos mais abastados países do planeta.
Vivo em um país onde não posso sair de casa
sem ser incomodado por pedintes, assaltantes, bêbados, drogados,
estupradores e outros vilões mais, não só no mundo real mas no
mundo virtual também; um país que gasta muitos homens bons e uteis,
além de muita verba do estado, todo mês na busca de supostos maus
policiais e o que consegue com isso é só inibir o trabalho dos bons
o que facilita a vida dos maus em seu dia a dia.
Vivo em um país onde os meus direitos não
são protegidos mesmo que eu cumpra com todas as obrigações que me
são creditadas; um país onde os direitos humanos não são para as
ultrajadas vítimas, via de regra indefesas ou reféns mas sim, para
os prepotentes e reincidentes réus, bem como para todos os seus
comparsas.
Vivo em um país onde o pão é sempre pouco e
caro mas o circo é monumental tanto no preço como na brutalidade e
no mome.
Uma
mulher cristã é martirizada sob Nero numa recriação do mito de
Dirce (pintado por Henryk Siemiradzki, 1897, Museu Nacional de
Varsóvia).
Vivo em um país que trata a iguais com
desigualdade e a desiguais com igualdade, um país onde o governo não
tem cérebro sequer para discernir que se a natureza quisesse que
todos fossem iguais, iguais os teria criado, iguais até no âmago do
DNA; nós não teríamos cromossomas diferentes ao sermos concebidos,
nasceríamos por bipartição, fissão binária ou cissiparidade.
Vivo
em um país onde por uma simples questão de justiça não posso
culpar o governo pelos absurdos que passo
para viver
e vejo acontecer
posto que, sem sombra de dúvidas aqui, talvez mais que em qualquer
outro lugar da Terra é verdadeira a afirmação
do filósofo francês
Joseph-Marie Maistre (1753-1821) que em uma carta
datada de 1811 colocou o
seu nome na história ao escrever:
“cada povo tem o governo que merece”.
Tanto
ele como eu, reconhecemos e pensamos, que os desmandos de um governo
nada mais é que a justa punição para aqueles que tendo o direito
de votar o fazem mal, quer por
ignorância, quer por simples despreparo
ou pior ainda, votam, não visando o benefício,
o futuro bem estar de
toda uma nação mas apenas
para atender aos seus próprios, momentâneos
e mesquinhos interesses, todos estes
voltados apenas para
a satisfação do seu
egoísmo, do seu imenso
egocentrismo; é também
uma justa punição para todos aqueles que, não
compartilhando ou
contribuindo para o voto vencedor, permanecem
silenciosos, apáticos ante
o ultraje e às máculas que tais
homúnculos fazem lançar, impunemente sobre um
povo, uma gente boa e justa.Quem macula e insulta a pátria brasileira (e não só) é o seu próprio povo, em seu silencio consenciente e não o seu governo, governo este eleito dentro dos parâmetros legais em vigor na época do evento.
Viver, não importa onde, é estar no
purgatório, é estar na antecâmara do inferno para todos os que
estão mais para animais que para homens ou, para todos aqueles que
se julgando homens, não são nada além de pobres de espírito, criaturas cientes e conscientes de sua própria
inferioridade natural e que foi guindada ao poder exatamente por assim o ser, posto que só pessoas como ele se aviltariam a ser apenas um descartável e barato títere; mas, se você
acha que as coisas não podem ficar pior sugiro que engaje-se na
laia dos favorecidos, marionetes, filie-se ao poder vigente e viva às custas do
trabalho alheio sempre que puder ou de qualquer jeito.
Mas se você sabe que as coisa podem ficar
pior ainda, deixe esta vida de parasita que leva enquanto é tempo,
antes que o seu hospedeiro acorde e o destrua; viver, não importa
onde, é estar no purgatório, purgatório este que não é a sala de
espera do inferno para todos aqueles que sendo, justos, honestos e
honrados não se misturam, pactuam ou associam-se a canalhas para
poder melhor viver.
Fontes:
São Paulo, SP, 25 de Março de
2014
Mkmouse