terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Treze Tics, Um Clic e Doze Tacs


(1)




Coloco o fumo de corda, picado a canivete, na palha fina.

Alguém se aproxima de mim por trás

Ouço um cli...

Atrás de mim à esquerda o murmurar de vozes em sons confusos e distantes na barraca da cozinha, ainda atrás de mim e depois de alguém, silenciosa a barraca dormitório bem como a outra, também dormitório, que tem a cozinha como vizinha.


Estou a ajeitar, com o canivete, o fumo à palha.


Um agradável cheiro de comida espalha-se pelo ar o qual mistura-se incontinente ao olor de terra inda molhada por chuva tranqüila cujas gotas como orvalho, agarra-se teimosamente à grama, que rasteira cerca-me por completo.


Dois fachos de luz, acompanhados por característico ronco de motor unido a ruídos peculiares como o ranger de molas que aliados ao esmagar dos pneus a rolar, atinge-me a íris e os tímpanos de traves á direita.


Era o terceiro veículo, o último, que da Casa Grande chegava sacolejando pela trilha na mata e que sem cerimônia nenhuma iria adentrar à clareira e alojar-se ao lado de outros dois que alinhados á luz da fogueira, pareciam adormecidos.


… ic...

Um relâmpago iluminou a clareira e o que nela havia: um, duzentos e cinqüenta avos de segundo acabara de passar.

A pessoa que apertou o botão do clic começa a se afastar, tão muda e silenciosa como chegou.

Começo a enrolar a palha ao fumo.

O motor silencia-se, adormece, abrem-se as portas, novas vozes junta-se ao coro da cozinha que após breve silenciar se fizera intenso novamente.

O enrolar da palha no fumo agora ia ao meio, após um característico vai e vem inerente ao contesto.


O cheiro de novos e gasosos odores perdem-se no ar freso e úmido.


Ouço a voz advinda do silencio quase secular dos hartos troncos, robustos, gigantes, donde as imbiras do cimo pendentes(2) une grandeza à pequenez.


Duas portas se fecham.


Chega ao fim o rolo da palha, é quase pronto o cigarro.


Sinto-me observado.


Olho para cima e lá esta Argos olhando a tudo e não só a esta criatura.


O ar, líqüido globular da abóboda celeste, plena em seu contraste visto ter Apolo partido, a observar o Cosmo faz com que os olhos de Argos pisquem zombeteiros sobre minha alma tranqüila em um tranqüilo anoitecer.


Abaixo a cabeça e com saliva a palha lacro.


Torna-se mais forte as vozes vindas da escuridão que ora abraça, com sutil força escondendo, as fraquezas, as grandiosidades e as sombras do reino vegetal e animal unindo-se, o canto e vozes estas, às vozes que como um coral me chegam ao pavilhão auricular da barraca, agora tão concorrida.


Crepita, caminhando para o auge, a fogueira á minha frente, a qual contemplo sentado em uma cadeira de praia.


Em no máximo uma hora a janta estaria pronta.


Dobro uma das pontas do cigarro e levo a outra à boca.


Tic-Tac, Tic-Tac...


Em meio a toda esta riqueza de sons, estava eu a ouvir um ruidoso, o nosso espalhafatoso, despertador em seu inexorável caminhar a conversar com o tempo que passa e lhe faz companhia amenizando a sua solidão.


Engraçado como o rugir silencioso da mata aguça nossos sentidos!


Tic-Tac, Tic-Tac...


Esvai-se o tempo no próprio tempo e a seu tempo, levando consigo o meu tempo.


Tic-Tac, Tic-Tac...


Quando do Tic chega o seu “T” este já é passado e o “i” não terá tempo para ser presente pois o “c” que outrora era o futuro esta a chegar, precedendo o silêncio que o separa do “T” do “Tac” que é o futuro próximo e este, o “T”, por sua vez arrasta consigo e na seqüência o “a” e o “c” todos ainda, neste fugaz instante, um futuro mui distante.


Olho para cima de novo, e vejo o rosto de Argos, a face de um passado [retrato de um tempo tão distante (senão mais distante ainda) como o dia do nascimento da Terra] ainda vivo, real na minha realidade, real no meu ali, real no meu hoje, real neste agora onde quer que seja, ou esteja, nesta Urbe Planetária!


Não consigo ver a realidade do agora, só o ontem distanciar-se de mim em vertiginosa corrida.


Não posso ver o amanhã, senão entre o desfilar de um Tic e um Tac...


Eis então que prevejo o futuro próximo:


- “Vou ascender o cigarro!”


Curvo-me para a fogueira.


Tomo de uma pequena acha e a aproximo da ponta dobrada do cigarro, a queimo e num longo aspirar o faço ascender em definitivo.


Desta vez acertei!!!


Nada interveio no processo desencadeado por mim.


Devolvo a brasa a sua origem.


Tic-Tac, Tic-Tac...


Estou dez Tic-Tacs mais próximos do momento de partir novamente para São Paulo e gozar do merecido recesso de fim de ano.


Saboreio com um prazer indescritível este momento único.


Há quase quatro anos que eram assim as últimas horas em um acampamento.


O cenário natural é sempre diferente a cada mudança, a cada volta ao campo, mas muito raramente mudava algum ator e nunca o palco onde se representava a peça que era sempre a mesma mas repleta e plena de improvisos em seu cotidiano.


Prevejo o futuro:

- “O ano que vem novos horizontes serão o meu palco nesta gloriosa natureza!”


Tic-Tac...

E foram!

Tic-Tac...

Quando cheguei em São Paulo, fui demitido!

Tic...

Hoje mais de três décadas depois posso escrever que graças a isso e a muitos outros “issos”, vi novos mundos, vivi muitas vidas, bebi de muitas águas, representei muitas peças e em muitos lugares, ampliei meus limites, estendi meu horizonte até onde pode chegar a minha imaginação humana e consegui, consegui viver as alegrias e agruras do presente, este tempo infinitamente pequeno, que separa o ontem do amanhã.

E a foto daquele começo de noite?...

Só Deus sabe por onde anda se é que existe.

Mas o homem é uma máquina do tempo e quanto mais tempo vive mais poderosa máquina temporal o é.

O homem, quando boa máquina do tempo pode ver, cheirar, ouvir e sentir vividamente o passado, pode dormir sobre o travesseiro das boas visões e nas horas de vigília pode contar com a sentinela que é, pois que como todos, não só viveu muitos maus momentos mas, e também, viu quem estes momentos houve por seu turno viver. Assim, e por isso mesmo, tem como saber a maneira, o modo de como podemos deles escapar e ainda na maioria das vezes quase plenamente ilesos.

A partir de agora e para os anos que possam vir, desejo a todos que consigam dormir tranqüilos e felizes sobre o travesseiro das boas lembranças, das futuras delícias e almejadas felicidades, que consigam sempre se livrar, contornar e vencer os empecilhos, as agruras e mazelas que possam ser encontradas pelo caminho e que a tristeza se lhes apresente sempre como um simples fantasma que, desesperado e em fuga desabalada, vai desfazendo-se á luz de um novo dia.

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1- Relogios Moles (The Persistence of Memory) - Salvador Dali (1931) - (Antes que receba alguma comunicação sobre a obra por mim citada e mostrada, quero informar que devido a quantidade de quadros que vi sobre o tema, não posso (não entendo de artes plásticas) garanti-la como uma obra de Salvador Dali.)

2 - O Canto do Piaga, Gonçalves Dias, Antologia (1966), pg 47 – canto III vs 45 a 50 – adaptados no texto pelo autor

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Um Verdadeiro Dia de Natal


...Tocam os sinos, tocam os sinos...

Hummm...

É natal.

Legal né?!

Mais um aniversário no calendário deste ano e desta feita, um de caráter coletivo, para a comemoração por todos indistintamente.

É a data mais separatista, hipócrita e egoísta do ano todo.

Apesar de ser um aniversário para a coletividade comemorar, não há um ajuntamento humano para o fazer, mas quando podem os homens o fazem só no seio dos familiares e com os mais “chegados” apenas, onde nem sempre estão os mais queridos.

Por um momento, apenas e tão somente um momento de uma vida, um instante no tempo total de uma existência a qual quis o destino ser difícil e sofrida, alguém mostra um sorriso a alguém, alguém estende uma mão amiga e solidária a alguém, alguém dá o calor de um abraço afetuoso a alguém, alguém da uma colher de sopa a alguém faminto.

Uma simples e única colher de sopa em um simples e único dia do ano!

Alguns cuja felicidade extrapola o vulgar neste dia ganha não só uma colher de sopa, mas um cobertor também.

É...

Um cobertor...

E com isso não só as estrelas hão de cobrir e aquecer o corpo sortudo, nem sempre com alguma saúde e quase sempre faminto em todas as outras muitas noites, algumas muito frias, de um único ano.

É...

Apenas um dia em trezentos e sessenta e cinco, quando não trezentos e sessenta e seis, e por apenas alguns momentos tão somente, alguém com necessidades prementes, vitais mesmo, sente o que poderia ser a felicidade!

Alguns, mais afortunados ainda sentem uma felicidade maior, a de poder dar a um ente amado provavelmente mais carente ainda, uma parte senão tudo, o que acabou de receber e não sem antes agradecer a bondosa mão doadora.

Mas há outros entre estes alguns, que sentirá a felicidade maior, o prazer infindável e indefinível de passar fome mais uma vez para que seu ente querido e mais esquecido ainda pela sorte possa comer e viver, viver quem sabe, um dia a mais ao seu lado.

Se isso não for tortura e das mais ferozes, definitivamente eu não sei o que é tortura.

Mas um transeunte a vagar sem destino certo, que abismado além de sofrido, maltratado e ferido, vê com olhos mais que esbugalhados, no obstante tristes, a opulenta riqueza, a maravilhosa beleza, a imensa fartura e o mais terno e fantastico amor dos quais nem mesmo simples migalhas, restos do egoístico banquete onde a fria hipocrisia e o feroz lucro fácil deleitam-se até o orgasmo pode sequer, pensar ou mesmo almejar tocar, sem ter que disputar as tais migalhas com os cães e ser por estes ferido senão morto em uma luta sem glória.

Apenas as sobras dos cães, quando existem, poderão quem sabe ser suas e isto se puder apanha-las durante a disputa entre seus pares.

E então, para culminar o horripilante desfile, delírio de luzes, cores, sons, formas e gestos, surge uma criança que como um ferro em chamas a arder, quente como o centro de uma estrela lhe queima a alma e sublima-lhe o espírito quando com peso de toda a sua inocência, pede.

Ah, e o que pede...

E o que pede é sabido por todos menos por ela, que não há como lhe ser dado.

Mas, eis que agora o ferimento é na alma e é profundo, dói, dói e sangra, e sangra fartamente, e o homem chora, aos prantos esfacela-se o seu coração já tão combalido, ferido e muito por outras lides, arranca-se-lhe então pela raiz a vida, a esperança que restava desfaz-se em desabalada fuga na névoa do desespero, quebra-se-lhe a delicada magia do sonho, mata-se inocência, escancara-se-lhe então as portas da vida e ele, por fim, contempla a face da própria sorte.

Mas é natal...

O Natal por fim chegou!

E aquele que nada tem, tem agora a sua miséria desnudada em toda a extensão e riqueza, tem a sua dor exposta à indiscrição pública com toda a nudez que lhe é pertinente é então o foco, mais uma vez, de uma audiência avassaladoramente grande e ávida por detalhes e está por fim, anonimamente, a fazer heróis às centenas e a enriquecer sobremaneira a já rica e exuberante miséria humana, para o proveito de alguns principescamente afortunados pelo poder, pelo dinheiro e plenamente bafejados pela sorte.

Mas um rato sabe, sabe como deveria ser um verdadeiro dia de Natal.

E ele deveria ser exatamente como o é agora, segregacionista e egoísta mesmo!

Sabe, que este é o único dia do ano em que deveríamos viver apenas e tão somente para nos e nossos entes queridos, nada mais.

É...

É isso mesmo!

O Natal deveria ser assim, exatamente como ele é agora.

O problema, o erro, não está no dia de Natal e sim nos outros dias do ano não importa qual desde que não seja, o dia de Natal!

O Natal deveria ser como é porque nos outros dias do ano nós deveríamos cuidar uns dos outros todos os dias e todas as noites, sem parar e sem olhar a quem, ajudarmo-nos sempre sem nem mesmo e sequer lembrarmos disso após consumado o ato, após a existência do fato.

O combate às misérias humanas seria durante todos os dias e noites de um ano, a obrigação de todos e não a abnegação de alguns ou o lucro de outros.

Se todos os dias e todas as noites os homens rondassem os homens a procura do sofrimento, da dor e do desespero, se os interesses e o bem estar de muitos se sobrepusesse aos interesses e o bem estar de uns poucos sem no entanto a estes ferir mas, e apenas, integra-los ao conjunto e isso todos os dias e noites de um ano, este dia, o dia de Natal seria exatamente o que é hoje, o único dia do ano em que nos voltamos para nós mesmos e nos presenteamos.

O único dia do ano em que esbanjaríamos a nossa felicidade com nós mesmos e com os nossos entes queridos apenas e unicamente.

Este é o verdadeiro espírito do Natal, a verdadeira idéia de Natal e será, quando este ano acontecer, este dia um verdadeiro dia de natal.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Cantiga para Ninar e Recordar


Cantiga para Ninar e Recordar


Se esta hora, se esta hora fosse minha.
Eu mandava, eu mandava que parasse,
Que parasse e ficasse bem quietinha
Para eu ver, para eu ver você que nasce

E nos passos, e nos passos seus tão curtos
Que se arrastam, que se arrastam pelo chão.
Andam lentos, mais velozes que o susto
Que nos pregam e nos pegam bonachão.

Ah!... Se o tempo, se do tempo meu presente
Eu pegasse, um instante tão somente.
Eu faria deste instante a semente
Desta hora, eternamente florescente.

Mas o tempo, este tempo inclemente
Não vacila, nem oscila tão somente.
Bate e volta, bate e volta como sempre
Mas nunca, bate e volta como a gente.

Estes dias, estes dias vão ficar
No passado, num passado mui distante.
E eu queria, eu queria então marcar
Este tempo, este momento tão infante

Mas é a hora, é a hora de calar
Não sem antes, não sem antes recordar
Um momento, um momento peculiar
Depois então, só então silenciar.

É na fala, é na fala que se grava
E recorda, e recorda tal figura
Que pequena, tão pequena então estava
Que o dedo de uma mão só segurava.

E neste dia, neste dia tão sereno
Um passeio, um passeio foi querendo
E mão no dedo, e mão no dedo segurando,
Fomos os dois, só nos dois então andando.

***
A foto mostra uma escultura que esta no Colorado em Loveland, no Benson Sculpture Garden